sábado, 31 de maio de 2008

A Liberdade é Terapêutica

Famosa frase do psiquiatra Franco Basaglia, que se tornou o slogan do Movimento Antimanicomial, um movimento político da segunda metade do século XX que defende a proteção dos Direitos Humanos para os usuários do sistema de saúde mental. Como tradicionalmente o serviço de saúde mental se constitui como oferta exclusiva do hospital psiquiátrico, também chamado de manicômio, e como esse estabelecimento possui algumas características intrínsecas de funcionamento que violam por si só os Direitos Humanos (internação forçada, desapropriação de bens, contenção química, isolamento, impossibilidade de participar da vida civil e também formas de terapia pseudocientíficas extremamente bizarras, como a indução de febre, o eletro choque e a imersão em água fria), o Movimento Antimanicomial ganhou esse nome por defender a abolição dos manicômios, que tradicionalmente são o único estabelecimento responsabilizado pela saúde mental.

Essa idéia ainda hoje é escandalizante, pois a nossa cultura bastante fundamentada na neurose, na intolerância e na segregação, não consegue conceber como alguém pode querer que os loucos fiquem soltos na rua. Só que esse é um movimento fundamentado tanto na observação e crítica de práticas bastante opressivas quanto de longas reflexões teóricas entre intelectuais, então o mínimo que se poderia supor é que quem defende a abolição dos manicômios sabe do que está falando. Apesar da conduta romântica dos protagonistas, o corpo teórico e conceitual é racional e já se tem muita coisa planejada.

O primeiro esclarecimento a ser feito é que os loucos não ficam ‘na rua’, no sentido de desprovidos de assistência de saúde e condições materiais adequadas. Essa idéia confusa e preconceituosa acaba levando as pessoas a deduzirem que, ou os loucos vão sair por aí sem controle aprontando as maiores loucuras e instalando o caos na cidade, que foi justamente o argumento usado para a instituição dos manicômios, ou que eles vão virar mendigos bêbados e delirantes atirados pelo chão. Mas a condição de doença mental não tem o caos, o perigo e a insanidade absoluta que o senso-comum e algumas escolas de pensamento supõem, assim como leões, elefantes ou tubarões não são bestas impetuosas e que agem despropositadamente, como era o pensamento vigente até a metade do século XX, e servia de justificativa para caçadas esportivas e verdadeiros empreendimentos de extermínio que ainda hoje ameaçam a biodiversidade. Doentes mentais, num geral, são menos propensos a comportamento agressivo do que a população normal, e também não é a loucura a causa da pobreza: falta de condições materiais para satisfazer direitos básicos de existência é que pode gerar a loucura, muito embora outros tipos de loucura sejam evidentes com o acúmulo de riquezas. Assim como eles não são bestas perigosas, mas sim pessoas que portam um grave sofrimento psíquico em função de suas experiências de vida e condições de existência, ele também não vai ser deixado sem ajuda. O Movimento Antimanicomial se baseia na defesa dos Direitos Humanos, é no mínimo óbvio que a intenção é proteger e cuidar dessas pessoas.

Mas não é meramente uma intenção: o Movimento Antimanicomial surgiu com preocupações bem práticas, e juntamente com a fundamentação filosófica, foraa pensadas formas de estruturar os serviços de saúde mental e o sistema de saúde como um todo de modo a alcançar seus objetivos. Para isso, devem ser necessárias práticas de assistências que garantam o acesso à saúde, educação, moradia, liberdade, convívio social, dinheiro, trabalho, justiça e dignidade. Com exceção da saúde, e ainda com algumas ressalvas, nada disso jamais foi suprido pelo manicômio, e nunca poderá ser, pois ele funciona justamente pela internação e pelo controle autoritário dos profissionais da saúde. Então, os serviços de saúde mental estão se estruturando como estabelecimentos aos quais o paciente se dirige quando ele reconhece que necessita de ajuda, e ao qual retorna em função de seu interesse em aliviar seu próprio sofrimento, como acontece com qualquer outro doente. Esses estabelecimentos são hospitais gerais, hospitais-dia, residenciais terapêuticos, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e ambulatórios. Como todo o resto do sistema de saúde pública, ele ainda tem muitas limitações e sofre muitas críticas, principalmente em função da falta de financiamento estatal. Este pensamento prático sobre a reforma do sistema de saúde mental é chamada de Reforma Psiquiátrica.

Mesmo com todas as limitações da Reforma Psiquiátrica, existe um fato que se torna cada vez mais evidente: de fato, a liberdade é terapêutica. Usuários do sistema de saúde mental da Reforma apresentam maior autonomia e estabelecimento de redes sociais, que são fatores terapêuticos, e passam muito menos tempo no processo terapêutico. Essas evidências são basicamente ‘clínicas’, pois a ideologia pós-moderna que atravessa essa luta é um tanto afoita a estatísticas e experimentos. Na verdade, o reconhecimento do caráter terapêutico da liberdade não deriva de nenhuma observação ou teste, mas da simples dedução de seus pressupostos teóricos: os Direitos Humanos são quesitos a ser defendidos para as pessoas viverem melhor e terem vidas mais plenas e dignas, e quem vive melhor terá menos sofrimento, então, considerando que a doença mental é um grave sofrimento psíquico, as boas condições de vida propiciadas pelos Direitos Humanos fazem as pessoas sofrerem menos, ou seja, atuam de forma terapêutica.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Adolescente descobre como decompor plástico em três meses

Notícia bombástica do TreeHugger, sobre um garoto da 11a série do Canadá, Daniel Burd, que descobriu uma tecnologia nova e absolutamente revolucionária para uma simples feira de ciências do colégio. Um dos maiores perigos para o nosso futuro é o acúmulo crescente de plásticos, o material mais utilizado no mundo e do qual a nossa civilização é absolutamente dependente. Então precisamos pensar em alternativas, já há um tempo defendidas pelos ecologistas e cada vez mais pela sociedade civil que tem um mínimo de preocupação com o futuro. O máximo que tínhamos até agora era a reciclagem, que apesar de necessária e muito benéfica e lucrativa, enfrenta alguns problemas de ordem econômica e também não dá conta da produção excessiva da indústria, além de problemas de ordem técnica e comportamental da região, como uma adequada separação do lixo. Mas como a reciclagem não dá conta, nós também precisamos de modificações políticas e institucionais, um novo sistema econômico, mudanças comportamentais drásticas na sociedade industrial, e, para ajudar, tecnologias inovadoras!
Os ecologistas alertam, com razão, que não devemos ter fé simplesmente na tecnologia. Mas é inegável que ela ajuda muito. Também não é possível deixar de ter um certo otimismo ao ver que adolescentes têm idéias inovadoras em ciência juntamente com uma forte preocupação política e ambiental.
O menino usou o nosso conhecido método científico (o que me faz pensar que as escolas no Canadá são realmente boas) e formulou uma hipótese: sabe-se que a previsão de decomposição do plástico na Natureza é de cerca de mil anos, então isso quer dizer que existe algo que produz essa decomposição, provavelmente microorganismos. Esses microorganismos são bactérias aeróbias quimio-heterótrofas com metabolismos altamente versáteis, o que significa que pode usar muitos compostos naturais e até artificiais, podendo sobreviver em ambientes com poucos nutrientes, e se estuda a sua aplicação na biotecnologiam mais especificamente, Sphingomonas e Pseudomonas. A aplicação delas a nível industrial é fácil, basta adicionar fermento.
Acho importante lembrar que isso não significa que agora podemos ser displiscentes quanto ao consumo e ao destino dos plásticos, imaginando que tudo vai se decompor no final e vai acabar bem. A aplicação desta tecnologia se limitará a ambientes específicos, como na fabricação ou em depósitos específicos de decomposição, em vez de batérias polimerófagas espalhadas por todo o mundo e quantidades massivas. Isso significa que a consciência ambiental, que prefiro chamar de modificação comportamental, e a modificação estrutural do nosso sistema econômico baseado em um número limitado de matérias-primas ainda se mostram necessários.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Psicanálise e (alguns dos) Seus Problemas

Andarilho diz:

Agora eu estou fazendo um relatório sobre o seminário do Mr. Antivirus, Norton. E ele é lacaniano. Então estou estudando Lacan por tabela

Marcelo Duarte diz:

Sim, sim. Eu tenho aula com ele. Mas segunda feira eu me meti.

Andarilho diz:

Fale-me mais a respeito.

Marcelo Duarte diz:

Eu dei umas encurraladas nele. O bom desse professor é que ele não é fanático, ele sabe das limitações da teoria. Tipo, eu questionei alguns dos fundamentos da teoria. A concepção estrutural do sujeito. Mas isso foi só dúvida. Eu critiquei mesmo quando ele falou da clínica porque, honestamente, a psicanálise como método acaba colocando todo mundo em análise, se puder. E ele meio que teve que admitir isso. E eu também critiquei uma outra coisa que ele colocou lá que era a incomunicabilidade existente entre as teorias.

Andarilho diz:

É... se for comparar uma coisa tipo TCC ou ACP com Psicanálise lacaniana, realmente não tem diálogo.

Marcelo Duarte diz:

Sim. E qual o motivo disso?

Andarilho diz:

Eu digo que é frescura.

Marcelo Duarte diz:

Cada teoria trata de um objeto diferente. E eu até acredito que o objeto Homem é um objeto construído, não está dado. Mas concomitantemente a isso, deveria haver um esforço de conciliação. Porque o objeto pode não ser exatamente o mesmo. Mas também não é inteiramente diferente.

Andarilho diz:

Mas daí tem que existir uma vontade (não quero usar "desejo" nessa conversa) de por as duas teorias no mesmo plano. Tipo, fazer um teste de eficácia, comparando clínica lacaniana e TCC no tratamento de esquizofrenia. Definir alguns pontos importantes da terapia, quanto tempo deve durar, elaborar manuais de conduta para as duas terapias. Enfim, fazer todas aquelas coisas empíricas que são altamente criticáveis por limitarem demais a terapia, mas que servem pra comparar duas técnicas e ver no que elas são eficazes. Só que eu duvido que exista algum lacaniano que vá fazer qualquer uma das coisas que eu listei. Pontos importantes da terapia? Transferência, e o Lacan escreveu um seminário inteiro sobre isso, que deve ser completamente enrolado e não dizer nada. Tempo de duração? Se possível, ad infinitum.

Marcelo Duarte diz:

Sim, sim. Mas eu nem digo da terapia. Falo mais da concepção teórica do sujeito, que é anterior à terapia.

Andarilho diz:

Isso entraria no "manual" - que daria tipo um código de conduta para o terapeuta durante sessão. Teria que escrever essas coisas de forma simples, clara e direta. E da última vez que a gente pediu uma cadeira assim para o departamento de Psicanálise, a gente teve que ouvir que é impossível fazer uma introdução à Psicanálise - tem que aprender por transferência. Em outras palavras, tem que ser psicanalista pra entender psicanálise.

Marcelo Duarte diz:

Sim. Mas isso aí é mentira. Hoje no meu estágio, já que tudo o que eu ia fazer foi cancelado, eu peguei o meu orientador para esclarecer algumas coisas que foram vistas em MEDEP. E ele basicamente desenhou para mim um diagrama sobre como é que as diferentes estruturas da personalidade se davam e porquê. Claro que ultrasimplificado. Mas foi bem didático.

Andarilho diz:

Ele é psicanalista teu orientador?

Marcelo Duarte diz:

Sim, é um lacaniano afu. Vai ver que como ele não é acadêmico, ele não está condicionado a ser tão enrolador quanto os professores. Só não é tão afu porque ele trabalha no posto.

Andarilho diz:

É, eu pensei que como ele trabalha no mundo real ele não tem tanto tempo pra viajar como nossos professores. Ele deve ver na prática que a teoria lacaniana não funciona (exceto retroativamente), e abandona o que não serve.

Marcelo Duarte diz:

Humm... Não teria tanta certeza.

Andarilho diz:

Quais as tuas hipóteses a respeito disso?

Marcelo Duarte diz:

Olha cara, tem uma hipótese que eu tenho que é a seguinte: A terapia psicanalítica funciona. Tipo, "tudo vai". Grande parte do que faz toda a questão terapêutica funcionar é a própria Terapia, entendida assim: Existe Terapia Psicanalítica, Terapia Humanista, Terapia Cognitiva, etc. Um dos componentes desse binômio é a Terapia. O outro é a linha teórica. Me consta que uma terapia, só por ser Terapia, já tem funcionalidade por si só. Dá pra chamar isso de placebo. Ou não, também. Mas não importa. Quanto ao restante, a parte psicanalítica, ou mesmo a lacaniana, pode funcionar em alguns casos, em outros nem tanto. Mas mesmo no contexto da transferência, é muito difícil avaliar o quanto a terapia está funcionando ou não. Muitas vezes o paciente e o terapeuta discordam sobre essa questão. E eles são os que mais deveriam saber. E mesmo que pareça não funcionar é pouco provável que o psicanalista vá descartar partes de sua teoria baseado nisso. Muito mais fácil é encontrar outro culpado. E desconfio que esse seja o caso para terapeutas de outras linhas também.

Andarilho diz:

Hmmm... Cara, tu já leu o artigo do Seligman sobre eficiência de psicoterapia?

Marcelo Duarte diz:

Aquele famoso que teve o estudo na inglaterra e concluiu que tudo meio que funcionava?

Andarilho diz:

Esse mesmo, que concluiu que, no final das contas, todos os tipos de psicoterapia estudados eram igualmente eficientes, apesar de nem todos serem eficazes pra muita coisa. A partir disso e de outras coisas, o Seligman formulou uma hipótese (ou teoria, sei lá) muito parecida com a tua primeira: que todos os tipos de terapia (ou de terapeuta) compartilham um núcleo comum de práticas. Ele chamou isso de "Práticas Profundas", por que elas estão além da teoria empregada. O Rogers já falava disso. Ele dizia que um terapeuta precisa ser empático, aceitar positivamente e de forma incondicional o paciente e ser congruente (fazer o que fala; falar o que faz). Esses três pontos seriam essenciais e suficientes pra uma terapia "dar certo" (seja lá o que isso signifique). Acho que essa lista é bem completinha, mas pode faltar alguma coisa. E, partindo dessa listinha, qualquer relacionamento pode ser terapêutico.

Marcelo Duarte diz:

O negócio do "incondicional" é controverso.

Andarilho diz:

Pois é. Por "incondicional" dá pra entender muita coisa. E dá pra argumentar que, a partir do momento que o terapeuta tenta mudar um comportamento do paciente, a aceitação dele não é mais incondicional. Mas enfim, tem que aceitar o paciente.

Marcelo Duarte diz:

Sim. Mas de qualquer forma, sejam esses os elementos ou não, o fato é que há algo em comum às terapias. E que faz a coisa andar.

Andarilho diz:

Sim. E talvez essas coisas em comum venham mais dos terapeutas em si do que da teoria.

Marcelo Duarte diz:

Mas eu discordo quanto ao "suficiente". Eu acho que o segundo elemento do binômio, a linha teórica, também conta. Alguns tipos de problema simplesmente não vão ser resolvidos com um sorrisinho empático. Tem algumas coisas que são pontuais, que não dá pra resolver de qualquer jeito.

Andarilho diz:

É, não dá pra tratar TOC só com abraço.

Marcelo Duarte diz:

Exato.

Andarilho diz:

Concordo contigo. Mas a partir do que eu sei de Rogers, o que ele quis dizer por "suficiente" é proporcionar auto-atualização (crescimento pessoal). O que é uma coisa bem diferente de tratar TOC, ou anorexia.

Marcelo Duarte diz:

Ah, tá. Auto-atualização pode ser.

Andarilho diz:

Por que um cara cuja maior preocupação é o crescimento pessoal não tem muita coisa com que se preocupar.

Marcelo Duarte diz:

Sim, sim.

Andarilho diz:

Talvez esses três pontos não sejam "suficientes", mas são necessários pra qualquer tipo de terapia

Marcelo Duarte diz:

É. Pensando generalísticamente, pode ser, com suas devidas exceções. Porque tem terapia que nem é tão empática mais vai igual. Sempre há exceções em termos de relações humanas. Mas certamente podemos dizer que são linhas gerais que têm sua importância ao constituir uma base terapêutica.

Andarilho diz:

Eu pensei no caso do psicanalista roots que se nega a apertar a mão do cliente pra não atrapalhar a análise, e que essa análise mesmo assim beneficia o cliente.

Marcelo Duarte diz:

Ou quando o cara tá deitado no divã olhando pro teto, não tá rolando muita empatia ali na mancha da pintura. Mas eu acho que um dos maiores problemas da terapia psicanalítica é ético, não ontológico ou metodológico.

Andarilho diz:

Que problema ético seria esse?

Marcelo Duarte diz:

O problema ético que eu vejo na verdade é mais de um. Começa pela prática de querer desenterrar problemas que antes não estavam manifestos. Procurar conflitos na pessoa. Não limitar o escopo de sua terapia e, por conseqüência, o poder de influência do terapeuta. Também não concordo com o lugar de saber não-compartilhado que o terapeuta assume. Tem muita coisa que vai rolar na contratransferência de um psicanalista que pode ser mais prejudicial do que benéfico.

Andarilho diz:

Pois é. Nesse artigo do Norton que eu li pra fazer o relatório, ele cita Lacan (viu que eu tava estudando por tabela?), que diz que a análise só vai adiante se o analisando se colocar num lugar de não-saber. Tu tem que colocar o analista numa posição divina pra daí se beneficiar do saber dele.

Marcelo Duarte diz:

Exato. E isso é uma das coisas que eu mais discordo.

Andarilho diz:

Sei lá, daí fica fácil pro analista, já que ele nunca vai ser questionado se funcionar assim.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Sociedade, Personalidade e Neurodiversidade

Para viver em sociedade é necessário ser bem ajustado de várias maneiras. A mais global destas maneiras é ter uma personalidade socialmente aceitável. Agrupamentos sociais selecionam pessoas com traços de personalidade mais bem vistos e vantajosos para o grupo. Não vejo nenhum problema nisto, até por que seria um contra-senso selecionar características que prejudicam a todos. Porém, isso acarreta alguns problemas. O primeiro é o processo de seleção. Em geral, seleciona-se as pessoas mais parecidas com a população em geral – em outras palavras, pessoas excêntricas, fora do centro comum, acabam excluídas socialmente. Por “centro comum” quero dizer qualquer coisa: brancos ou pretos, judeus ou arianos, introvertidos ou extrovertidos... ou qualquer outro parâmetro que se desejar. Hoje em dia isso não quer dizer grande coisa, já que dá para viver sozinho num apartamento comendo comida congelada e tele-entrega, mas há não muito tempo atrás, viver isolado de qualquer coletivo significava morte certa (e em algumas situações-limite ainda significa).

O processo de seleção não é, contudo, um sistema meramente binário, tendo mais possibilidades do que DENTRO DO GRUPO e FORA DO GRUPO. Na verdade, a exclusão social é o último recurso, pelo menos na civilização atual. Antes disso, ocorre uma tentativa de moldar a personalidade do excêntrico. Isso por si só não é ruim, e acredito ser possível justificar tal prática numa isolada tribo da Nova Guiné, mas suas conseqüências podem ser nefastas. Acho que não é necessário explicar com muita profundidade no que consiste esse processo, pois acredito que todos que lêem este blog já passaram por alguma situação em que sentiram-se pressionados a mudarem seu jeito de agir para serem socialmente aceitos: tirar boas notas, pegar mulher na festa, beber até cair, não urinar em sala de aula... qualquer coisa. Como já disse, essa mudança não é necessariamente ruim (sinceramente, eu não gostaria que mijassem na sala aqui de casa). Acho que o buraco é mais embaixo.

Historicamente, personalidades ditas ruins foram consideradas patológicas – a mais exemplar destas é a personalidade anti-social, mais conhecida como personalidade de psicopata. Não quero defender os crimes cometidos por psicopatas por aí, pois acho que qualquer ser humano que conscientemente (1) se torna um risco para outros e não sente remorso por isso, ou, se remorso for pedir demais, não ver vantagens em ser socialmente adaptado, ele deve ser mantido fora da sociedade. Deve ser tratado com dignidade e respeito, mas isolado para que não cause danos a ninguém. Entretanto, muitas pessoas são discriminadas por características comportamentais e personológicas que são mal-vistas por causa de crenças coletivas infundadas. Entre essas pessoas encontram-se psicóticos, Autistas (3), “portadores” (2) de Transtorno de Déficit de Atenção e/ou Hiperatividade (TDA/H), e outros cujos comportamentos estão definidos no DSM ou na seção 7 da CID (4).

Aqueles que se enquadram em uma ou mais destas definições não são perigosos por causa de seus transtornos. Admito que um psicótico em surto pode ser bem perigoso, especialmente se ele achar que é Azrael o Anjo da Morte e que a hora de todos os seus vizinhos chegou (5), mas não é durante o surto que o preconceito acontece (até porque não dá tempo de fazer isso enquanto se tenta impedir que Azrael te decapite a pauladas), mas depois, com as rubricas sociais: “te cuida com aquele ali, ó, ele já foi pro São Pedro (6) quatro vezes. É louco de pedra!”; “é doido, coitado. Segura tua bolsa, querida.”; “lugar de louco é no hospício!” O sujeito pode ser a criatura mais mansa do universo, mas a mancha está lá, e ele está condenado ao limbo da sociedade.

Com os autistas, a coisa é um pouco mais complicada. Em termos gerais, o distúrbio caracteriza-se por uma grande dificuldade de socialização, de empatizar com outras pessoas e tendência a ficar muito tempo em seu “mundo interior”. Há casos mais sérios, mas o núcleo comportamental comum a todos que se encaixam no espectro autista está aí (se estiver errado ou incompleto me corrijam). Isto não é necessariamente ruim, e não o é na maioria dos casos, mas como dificuldade de socialização é uma coisa socialmente mal-vista (DÃ!), e muitos pais de crianças autistas sentirem na pele como é duro seu filho não olhar em seus olhos, faz-se de tudo para desenvolver técnicas para que eles tornem-se mais capazes destas coisas e saiam de dentro de suas conchas. De novo, considerando as coisas positivas que socializar-se traz, não vejo nada errado com isso. Só que o processo é bem duro, e muitas vezes maltrata os autistas. Por exemplo, autistas que tomaram remédios para tornarem-se mais mansos relatam que sentiam-se mentalmente inertes. Em uma situação mais cruel, autistas têm os olhos muito sensíveis para luzes fluorescentes, e quando entram em recintos iluminados predominantemente por lâmpadas deste tipo começam a gritar, fazer escândalo, essas coisas que a gente não quer ver por aí, por que dói. Para que isto não aconteça (e para que os pais dos autistas sintam-se como pais normais), as crianças são condicionados via Análise Aplicada do Comportamento para não emitirem este comportamento. A dor nos olhos continua, mas pelo menos eles são bons meninos e boas meninas, e é isso que conta.

O problema dos “TDA/Hs” é diferente. Eles são perfeitamente capazes de socialização, mas tem maior dificuldade do que a média da população para concentrar-se em uma tarefa só e manter-se nela por um período considerável de tempo, e precisam estar em constante movimento, além de “viajarem” com muita facilidade (de forma similar aos autistas, TDA/Hs são bastante introspectivos). Trazendo para o plano concreto, é mais difícil para eles prestarem atenção em aulas (especialmente expositivas) e trabalharem, pois não conseguem prestar atenção direito e ficam “brincando” de alguma forma para manterem-se em movimento (por exemplo, malabarismos de uma mão só, com canetas, controles remotos e similares). Não é que não consigam – é só bem mais complicado. Sou um paciente com TDA/H típico, e sinto na pele estes problemas. Falando por experiência própria, quando preciso trabalhar, eu trabalho, e quando preciso estudar, eu estudo. A diferença entre eu e uma pessoa não-TDA/H é o tempo que eu levo para sair de um estado passivo de vadiagem para um estado ativo de estudo/trabalho. Em um panorama mais geral, são poucos portadores deste transtorno que não conseguem realmente trabalhar – se a preguiça é a mãe da necessidade, a necessidade é mãe do trabalho árduo. Adultos que dependem de seu salário sabem que, se vadiarem, vão para rua. Inclusive TDA/Hs. Quem mais sofre com este “problema” são as crianças em idade escolar. Não conseguir parar quieto em aula não só é um comportamento mal-visto, mas é encarado como desrespeito pelo professor e falta de interesse em aprender por parte do aluno. Não considero aulas expositivas o modelo de ensino ideal para ninguém, mas, como sinto na própria pele, é muito pior para quem têm déficit de atenção e/ou hiperatividade (7). Assuntos que em outro contexto seriam muito interessantes tornam-se francamente aversivos, como Física ou Química, e o aluno TDA/H sofre muito mais para estudar (esqueci de dizer que a tolerância à frustração para portadores deste distúrbio é menor do que a média da população). E daí, dá-lhe ritalina pro guri parar quieto e obedecer o professor!

Numa sociedade perfeita, a distância entre o socialmente aceitável e o existencialmente mais agradável seria a menor possível, permitindo que as pessoas convivessem em harmonia, mas não tolhessem seu crescimento pessoal e potencialidades para tanto. Não é assim onde nasci e me desenvolvo. Os remédios e técnicas utilizados para tornar estas pessoas mais socialmente aceitáveis funciona e trás benefícios claros – um surto psicótico causa danos irreparáveis no cérebro, e quanto mais puderem ser evitados, melhor, e não há via mais eficiente que o tratamento farmacológico (8). Posso dizer o mesmo para autistas e TDA/Hs, pois ambos se beneficiam de certos tratamentos. Entretanto, a personalidade destes, seu próprio modo de ser é mutilado, destruído até. E por que isso? Por causa de uma sociedade incapaz de acolher e aceitar as diferenças. Soa patético e piegas isso, eu sei. Mas é real. Não foram poucos os psicóticos, autistas e hiperativos que demonstraram aptidões artísticas e científicas excepcionais. O São Pedro está cheio de artistas; desconfia-se que Einstein era aspergher, e pode-se inferir com bastante certeza de que Jung era um TDA/H também (e eu, é claro).

Recentemente, um grupo de autistas e simpatizantes trocou idéias e uniu-se pela causa de garantir maior liberdade para os autistas poderem ser o que são – autistas. Como eles próprios afirmam, eles são cidadãos de pleno direito, mas com um funcionamento cerebral diferenciado. Chamam sua causa de Neurodiversidade. Acredito que o mesmo pode ser dito dos outros “transtornos” que citei aqui, e esta busca ampliada para incluí-los também. Por que não considerá-los formas de personalidade diferentes? O próprio Jung, segundo diz meu pai, identificara o TDA/H antes dos psiquiatras do DSM o classificarem. Mas ao contrário destes, Jung o definiu como sendo a personalidade intuitiva – cujo foco libidinal é mais voltado para o mundo interior. Bem diferente da doentificação psiquiátrica.

Não defendo deixar os autistas viverem como estão, deixar os psicóticos em surto correndo por aí ou os TDA/Hs eternamente perdidos em suas divagações – isto não seria saudável. Em sua obra, Jung fala do processo de Individuação. Este processo de crescimento se dá através do desenvolvimento das funções pouco desenvolvidas em nós: introvertidos tornam-se mais extrovertidos, pessoas racionais tornam-se mais emotivas; o contrário também acontece (9). Acredito que, em uma sociedade ideal, nossas diferenças seriam respeitadas, mas nos seria permitido desenvolver aquilo que precisamos para nos tornarmos indivíduos únicos e saudáveis, e acredito que, se desejamos que tal sonho torne-se realidade, devemos primeiro criar uma sociedade mais neurotolerante.





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1. A questão da consciência em psicopatas me soa complicada demais para poder dizer se eles possuem consciência ou não de seus atos, mas considerando que muitas pessoas com transtorno de personalidade anti-social são muito inteligentes e capazes de elaborar detalhadamente planos para longo prazo, vou assumir que eles têm consciência de que o que fazem é errado.

2. Palavra ruim, eu sei, mas não consigo pensar em nenhuma melhor.

3. Por motivos práticos, considero autista todos os portadores de condições que se encaixam no espectro autista, como a síndrome de Asperger.

4. DSM = Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, atualmente na quarta edição revisada; CID = Classificação Internacional de Doenças, atualmente na décima edição. A seção 7 da CID é de transtornos mentais (se não me engano).

5. Nesse caso, internação em uma ala psiquiátrica de hospital geral com vigilância faz MUITO sentido. No momento aqui no Brasil, e mais especificamente em Porto Alegre, os psicóticos surtados são internados em hospitais psiquiátricos, mas por motivos que não quero comentar aqui, não é a situação ideal. O Marcelo já falou sobre isso aqui e aqui.

6. Hospital Psiquiátrico São Pedro, também conhecido como “O Glorioso”. Pelo menos é assim que o diretor daquela joça chama o lugar.

7. Nunca conversa informal esses dias, o Lobo da Estepe (outro TDA/H óbvio e assumido) disse que a escola ideal para um TDA/H seria um parque de diversões com livros em locais específicos e bem chamativos, para que as crianças pudessem movimentar-se e ler à vontade quando achassem melhor. Os professores ficariam por perto para tirar dúvidas e cuidar para que os moleques não se esfolem além da conta (por que infância sem joelho ralado não existe). Talvez isso não funcionasse em uma escola primária, mas eu certamente adoraria se a Psicologia da UFRGS funcionasse dessa maneira.

8. Claro que, para alguns, o melhor remédio é um “bom ambiente”.

9. Na tipologia jungiana, há quatro funções psíquicas diferentes, além dos pólos extroversão-introversão da direção da libido: sensação, pensamento, intuição e emoção. Simplificando bastante, intuição é a função oposta de sensação, e pensamento a oposta de emoção. Cada pessoa tem uma dessas como função primária, a mais importante e desenvolvida, outra como função secundária, auxiliar à primária e tão desenvolvida quanto, a terciária e a quaternária, que são muito pouco desenvolvidas se comparadas com as duas primeiras. No processo de individuação, busca-se harmonizar estas funções e torná-las igualmente desenvolvidas. Se dispostas em um círculo, as quatro funções ficariam cada uma em um ponto cardeal, sendo seu centro o Self (arquétipo do desenvolvimento humano máximo e ideal a perseguir). Para uma melhor explicação, clique aqui (em inglês).

domingo, 18 de maio de 2008

Reforma Psiquiátrica - Uma Visão

"Quem não se comunica, se trumbica!"

De quinta-feira pela manhã até sábado à tarde eu estive envolvido com a 4ª edição do Mental Tchê, o maior congresso do estado sobre Reforma Psiquiátrica, que ocorre todos os anos em São Lourenço do Sul.

A temática deste ano girava em torno da mídia e de como ela é extremamente enviesada no que diz respeito à veiculação de informações sobre a reforma psiquiátrica. De modo geral, não existe divulgação da grande imprensa sobre este evento, por exemplo, apesar de reunir mais de duas mil pessoas da área. Além disso, a reforma psiquiátrica e os serviços substitutivos do SUS costumam ser negligenciados pelas manchetes, aparecendo somente os furos do sistema.

A proposta do evento incluía fazer uso de redes alternativas de comunicação para espalhar a boa palavra da luta anti-manicomial. E eu, como blogueiro e mentaleiro, farei minha parte!

São Lourenço do Sul é uma das cidades pioneiras e mais engajadas no Brasil no que diz respeito aos serviços substitutivos dos antigos manicômios. Estes últimos foram durante muito tempo o único recurso utilizado para as pessoas portadoras de sofrimento psíquico grave (nosso novo jargão para substituir a palavra louco). A Reforma Psiquiátrica, no entanto, propõe o fechamento destes hospitais psiquiátricos e sua substituição por uma rede de serviços alternativos. São Lourenço, apesar de ter apenas 45 mil habitantes, possui três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e alguns leitos no hospital geral para a sua população. É uma proporção bastante elevada. Os CAPS são casas onde pessoas em crise podem passar o dia, engajando-se em atividades terapêuticas e recebendo atenção, contudo sem serem privados de sua liberdade e de um tratamento humano. Os hospitais gerais são a resposta da Reforma para aqueles casos em que a internação é absolutamente necessária. Um hospital geral é muito menos estigmatizante, excludente e opressivo que um manicômio.

Inspirada nas idéias e ações do psiquiatra italiano Franco Basaglia, esta luta anti-manicomial já está acontecendo aqui no Brasil há alguns anos, tendo em 2001 recebido diretrizes federais para a reformulação do modelo de atenção à saúde mental. Com isso criaram-se os CAPS e outros vários projetos visando a extinção gradativa dos manicômios e um tratamento mais humano aos ditos "loucos", além de uma concomitante intervenção cultural visando a ressignificação da loucura na nossa sociedade. Tirar os loucos de dentro dos hospícios e trazê-los de volta para as ruas implica mudar a primitiva e alienada concepção que o senso-comum tem dos loucos, vistos quase que invariavelmente como imprevisíveis, descontrolados e potencialmente violentos. A realidade da loucura não é bem assim, mas sobre este assunto poderei falar melhor em outra ocasião.

O grande problema é que o movimento anti-manicomial encontra muitas resistências, incluindo falta de financiamento estatal, além de uma desconfiança e má vontade dos setores mais conservadores da sociedade e uma oposição de alguns segmentos da classe psiquiatra. Deste modo, os resultados da ainda jovem batalha em prol da Reforma Psiquiátrica são mostrados com muita parcialidade, enquanto os investimentos necessários para levar adiante os projetos não estão sendo efetivamente cumpridos, o que compromete também o andamento do processo. Algumas vezes a Reforma Psiquiátrica é retratada como um movimento na direção errada, que causará mais mal do que bem para os pacientes e para a sociedade. Isso é um equívoco. Os seus méritos são inúmeros. Eventos como o Mental Tchê permitem que isso tenha uma visibilidade gritante. Eu poderia falar muito mais sobre o valor desta causa, mas no momento o tempo não me permite. Basta dizer que é uma das poucas coisas na psicologia que eu realmente acho que valem a pena.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Ciência e Religião

É inato no ser humano buscar a verdade – considero isso um fato universal a todas as pessoas de todos os tempos. Entretanto, o mesmo não pode ser dito dos meios utilizados para buscar essa verdade. Atualmente, existem dois caminhos majoritários, que apesar de não serem auto-excludentes, frequentemente são colocados como exatos opostos: ciência e religião. Ambos são meios válidos para apreender a realidade do mundo, entretanto, diferem radicalmente no modo de funcionar.

A ciência trabalha com hipóteses, e seu princípio fundamental é a dúvida, pois um “cientista sem uma questão não é ninguém” diria Aristóteles. Com base no falseamento, o cientista busca alcançar um conhecimento mais sólido e válido, partindo do que já era previamente conhecido. Trocando em miúdos, o cientista formula uma hipótese, desenvolve uma metodologia para testá-la e então, baseado nos testes empíricos, confirma, refuta ou reformula sua hipótese original. A religião, por outro lado, é muito mais simples: um representante do poder divino é imbuído com o conhecimento eterno, e então ele o transmite para outras pessoas, que acreditam ou não no que lhe dizem. Digo mais uma vez que ambos os caminhos são maneiras válidas para compreender a realidade e que não são conflitantes entre si, pois a natureza que ambos tentam apreender é qualitativamente diversa. Enquanto a ciência enfoca o mundo material e seus fenômenos, a religião explica o mundo imaterial, transcendente, divino.

O conflito que atualmente existe entre estas duas vias é o desejo político de alguns de, utilizando-se de seus métodos específicos, refutar os pressupostos do outro (1). Por exemplo, muitos cientistas de renome como Richard Dawkins tem efetuado o que se pode chamar de “cruzada” contra as igrejas evangélicas. Mas devo dizer que quem começou a briga foram os evangélicos, que querem a todo custo que seja ensinado nas aulas de ciências a Teoria do Design Inteligente – um nome bonito para Criacionismo – com status de igualdade com a Teoria da Evolução. Dawkins, um biólogo evolucionista, não poderia deixar barato.

E apesar de ter dito anteriormente que ciência e religião são caminhos igualmente válidos e que podem conviver pacificamente, acredito que não podemos confundi-los. Sendo mais específico, não podemos deixar a religião tomar o lugar da ciência, muito menos a ciência tornar-se uma religião.

Grosseiramente falando, a ciência lida com incertezas, e assim progride, trazendo maior conforto e saber para a humanidade, enquanto a religião lida com certezas, permanece imutável e dá segurança e solidez para aqueles que a procuram. Para quem estuda alguma disciplina científica ou possui um apurado pensamento lógico, é evidente que cada vez mais a ciência se encarregará de responder questões que anteriormente pertenciam à alçada da religião. A astronomia hoje é considerada uma disciplina solidamente estabelecida como ciência, e ninguém (de bom senso) questiona se a terra é redonda ou se o sol é o centro do sistema solar. Existem sólidas evidências que corroboram para que a Teoria da Evolução seja considerada “verdadeira”: descobriram-se muitos fósseis de animais extintos que deram “origem” a espécies atuais, foi observada a seleção das populações melhor adaptadas para viver em determinados ambientes e a extinção de espécies e subespécies mal-adaptadas ao seu habitat. Por ser impossível criar um experimento que manipule diretamente a Evolução, não podemos considerá-la uma teoria absolutamente comprovada, mas temos muitos motivos para acreditar que é uma metateoria boa demais para ser refutada. Contudo, Darwin é mais polêmico que Copérnico por que na Bíblia não há um tratado de astronomia, mas há uma descrição bastante detalhada de como Deus criou todos os animais em um dia, o homem no outro e descansou no último. Por refutar a história bíblica do livro de Gênesis, que narra a criação do universo, o Evolucionismo é uma heresia, e põe em xeque a fé de bilhões (2) de pessoas de que um Deus todo poderoso existe. Pessoalmente, acredito que a Teoria da Evolução não é tão poderosa assim, e não consegue refutar a existência de Deus. Ainda assim, considerando que muitas pessoas religiosas apresentam pensamento “preto ou branco”, falsear um aspecto menor de sua crença é o suficiente para deixar milhões em pé de guerra.

Utilizando-se do argumento de que a Evolução é “apenas uma” teoria dentre muitas, os criacionistas defendem que a Teoria do Design Inteligente (que um ser superior criara todos os seres vivos do planeta) deve ser ensinada como alternativa nas aulas de biologia. Já falei que a Evolução não é só “apenas uma” teoria, mas A Teoria biológica mais versátil e avançada de que dispomos, tanto que ela tem sido generalizada para muitos outros campos, entre eles a Psicologia. O Design Inteligente, por outro lado, é apenas a reformulação de um dogma milenar, que explicou e deu conforto para muitas pessoas no passado, mas que não possui nenhuma base científica sólida – apenas o desejo da parte de muitos para que seja verdade. Mas como disse John Adams, fatos são coisas teimosas, por que continuam sendo fatos apesar de nossa vontade.

Não concordo com tudo o que Dawkins e outros de sua classe dizem, mas acho perfeitamente razoável que eles armem um contra-ataque filosófico forte contra os crentes. Abandonar uma teoria versátil, dinâmica, flexível e que permite que inúmeras pesquisas novas se desenvolvam a partir dela, e substituí-la por outra engessada, rígida e tão conservadora que não permitiria nenhuma nova descoberta (3) seria uma catástrofe. Aplicar o rígido pensamento religioso para a ciência não pode trazer nada de positivo, justamente por impedir inovações, e estimular o comodismo intelectual.

E apesar desta minha apaixonada defesa do pensamento científico, sinto-me no dever de apontar os riscos que ele encerra. Considero a verdadeira Ciência inatacável, pois um cientista verdadeiro, comprometido com a busca da verdade, honesto consigo mesmo e com os demais beneficiará o mundo muito mais do que o prejudicará, creia ele em Deus ou não, pois sua conduta o coloca acima de disputas políticas mesquinhas. Por outro lado, muitos centros de pesquisa científica fazem qualquer outra coisa, menos Ciência. De fato, é muito comum uma disciplina anteriormente científica transformar-se em um culto organizado em torno de suas “descobertas”. O exemplo mais bem-acabado disto é a Psicanálise. Esta disciplina, criada no fim do século XIX por Sigmund Freud, tinha originalmente o intuito de estudar os processos psicológicos profundos dos seres humanos. Freud considerava o método científico o melhor disponível para estudar qualquer coisa, e a Psicanálise foi estruturada de forma a ser uma ciência natural. Se isso tornou-se realidade, é outra história. Como disse antes, a ciência lida com hipóteses mutáveis, e a religião lida com certezas permanentes. Freud aparentemente esqueceu-se disso, e quem quisesse se tornar um psicanalista deveria aceitar incondicionalmente os pressupostos psicanalíticos. Quem discordava deixava de ser discípulo e era expulso do clubinho. Adler, Jung e Reich que o digam. As contribuições do velho Sigmund para a Psicologia são inestimáveis, pois os questionamentos feitos por ele permitiram que muitas e muitas pesquisas novas florescessem, e o conhecimento que possuímos sobre nós mesmos seria muito menor se não fossem os insights freudianos. Entretanto, Freud poderia ter feito uma colaboração muito maior para a humanidade se tivesse considerado a possibilidade de estar errado em algum ponto de sua teoria, e a mantivesse aberta para reformulações propostas por outros que não ele (4). Hoje, a Psicanálise Freudiana Ortodoxa é considerada uma mera pseudociência.

Pseudociências, de maneira geral, são cultos religiosos que se passam por ciências sérias, cujos pressupostos são rígidos, inflexíveis e absolutos, além de contarem com um embasamento empírico muito duvidoso (5). O processo para tornar-se membro de determinado grupo ou movimento pseudocientífico é muito similar ao processo para tornar-se membro de uma igreja. Para poder entender as teorias dele, é necessário primeiro estudá-lo. Não apenas ler os artigos e pensar a respeito, mas fazer cursos, participar de conferências e perder um bom tempo lendo e relendo os textos mais básicos até entender. Depois de tanto dinheiro investido (por que, acredite, esses cursos não são baratos, pelo menos no caso da Psicanálise) e tempo utilizado para melhor compreender as idéias propostas pelo grupo, elas passam a fazer sentido para você – e este conhecimento te difere dos demais mortais e te eleva perante eles. Você se torna um igual perante os demais membros do movimento. Isto se chama “iniciação”. Depois da iniciação, você poderá ler os textos mais avançados, e tornar-se ainda mais erudito e entendido na teoria. Quem não segue este processo não está adequadamente preparado para criticar a teoria, mas o engraçado é que quem faz tudo isso não critica nada! É compreensível, pois deve ser bem humilhante ter que admitir que tudo o que se gastou e investiu foi inútil. É cognitivamente mais econômico ter certeza de que o que lhe ensinaram é absolutamente verdadeiro, e é mais carinhoso ao ego. Karl Jaspers, em seu livro “Introdução ao Pensamento Científico” cita o exemplo de uma discussão que teve com um psicanalista, que alegava que, uma vez que ele, Jaspers, se submetesse à análise, toda a teoria psicanalítica faria sentido para ele. Ou seja, ele precisava colocar-se em posição inferior e receber o conhecimento de fora. O bom existencialista questionou isso na hora. Afinal, qual é a diferença deste processo todo da crisma católica? Começa-se estudando a Bíblia, vai-se crescendo, e no fim do processo, recebe-se a crisma e torna-se um adulto perante Deus. Trocando “Bíblia” por “livro-texto”, “crisma” por “diploma” e “Deus” por “Chefe da Teoria”, temos essencialmente a mesma coisa.

Fazer a crisma não é algo inerentemente negativo, pois é um rito religioso que reconhece-se como tal, e não tem nenhuma pretensão científica (geralmente). Mas com as pseudociências, o buraco é mais embaixo. Estes iniciados em obscuras artes não se contentam em aprender a teoria, mas querem pô-la em prática, geralmente cobrando uma boa grana por isso. Aqui em Porto Alegre existia (ou existe) uma clínica especializada em curar síndrome de down através de exercícios de respiração. Quantas e quais pesquisas comprovam a eficácia destes exercícios? Nenhuma. Quanto deve custar para receber este tratamento? Muito. Levando em conta a relação entre custos e benefícios, é vantajoso para uma mãe desesperada pela condição de sua criança fazer um tratamento assim? Nem financeiramente, muito menos emocionalmente. É bem provável que algum iniciado em Dianética (a pseudociência por trás da Cientologia) possa colocar em risco o emprego, o negócio ou até mesmo a vida de alguém ingênuo o suficiente para pagar por seus serviços. Todo cuidado é pouco em situações como estas.

Os casos que citei são extremos, pois envolvem sentimentos e vidas de seres humanos. Entretanto, há casos mais sutis, onde a única morte é do espírito crítico de estudantes de Ciências Humanas, como Psicologia. Começa-se exigindo que se leiam todos os textos de certa disciplina para então poder criticá-la, que se faça referência aos autores que o professor quer, e pronto! Temos mais alguns seguidores da teoria, que a aceitaram apenas por que ela é misteriosa, complexa, e por ter lido tanto que se passa a acreditar piamente nela (6).

Mas, apesar de tudo que disse, acredito que seja possível que haja uma relação e uma intersecção saudável entre ciência e religião. Apesar de tentarem entender coisas diferentes de formas diferentes, ambas compartilham a busca pela verdade. A religião pode propor os desafios de pesquisa, enquanto que a ciência refuta suas hipóteses. Dogmas imutáveis trazem segurança, mas nos cegam para esta busca. Se as religiões forem capazes de tornarem-se mais flexíveis, autocríticas e questionadoras, provavelmente metade dos conflitos que enfrentamos no mundo hoje perderiam todo o sentido e acabariam. Seria bem melhor viver em um mundo onde as religiões são científicas, e as ciências não são religiosas.




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1. Também ocorrem pesquisas muito interessantes sobre aspectos neurológicos das experiências religiosas, mas que considero muito diferentes dos conflitos abordados neste post.

2. Talvez nem tanto, mas estou me baseando nas estatísticas de que 1,5 bilhão de pessoas são cristãos, e que todos acreditam em tudo o que a Bíblia diz.

3. Sério, alguém por favor me diz como eu posso fazer pesquisas utilizando os pressupostos teóricos da Teoria do Design Inteligente. Confirmações fuleiras da existência de Deus não contam como pesquisa.

4. Dizer que Freud não reformulou sua teoria da psicodinâmica é ignorância. A questão é que só ele podia fazer isto – os seus seguidores deveriam meramente acatar sua decisão.

5. Existem teorias que, apesar de não terem um bom embasamento empírico, seja por serem muito novas ou por não existir interesse em pesquisá-las, são boas e contribuem para o progresso científico. Para não ser injustos com estas teorias, os filósofos da ciência as chama de “protociências” – projetos de ciência. Frequentemente a Psicologia como um todo é considerada uma protociência.

6. Juro que nunca tive aulas assim. É sério.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Senso de Justiça em Primatas

Seguindo a série de descobertas científicas de capacidades “humanas” em animais “inferiores”, venho aqui neste blog falar de uma pesquisa conduzida pelo primatologista Frans de Waal (não, não é o cara dos átomos).

A grande descoberta é que macacos preferem uvas a pepinos. OK, admito que dito desta maneira parece imbecil, mas é só explicar a metodologia do estudo para ver que há mais por trás desta afirmação.

No estudo, dois macacos recebiam um pedaço de pepino ou uma uva como reforçador de uma tarefa simples. Se os dois recebessem pepinos ou uvas, seria como qualquer outro estudo comportamental com animais, eles seriam reforçados e continuariam a realizar a tarefa. Entretanto, quando um macaco recebia uma uva, enquanto o outro recebia um pepino, o que recebia o pepino se rebelava, parava de realizar a tarefa ou se recusava a comer seu prêmio. Este comportamento dito irracional é chamado de “aversão à iniqüidade”, e é considerado uma virtude entre seres humanos. Alimentos que contém mais açúcares, como uvas, são mais valorizados que outros com menores quantidades, como pepinos. Os macacos que recebiam pepinos consideravam-se injustiçados, e recusavam-se a realizar as tarefas até que a divisão de recompensas melhorasse.

Talvez estejamos antropomorfizando os pobres coitados, mas acho que vale lembrar que macacos também elaboram Teorias da Mente (em outras palavras, são capazes de interpretar e tentar prever o comportamento de semelhantes), e que eles são mais inteligentes do que o senso comum supõe. Assim sendo, é bonito ver que não somos apenas nós que desenvolvemos um senso de justiça no reino animal, e que pelo menos algumas espécies de macacos também o fizeram.

Frans de Waal faz um alerta: “Se os macacos já têm problemas em aceitar a desigualdade de renda, pode-se imaginar o que ela faz conosco; cria grandes tensões dentro de uma sociedade, e sabemos que tensões afetam o bem estar psicológico e físico.”

Talvez não nos voltemos para os procariontes, mas para os primatas com certeza.