sábado, 29 de março de 2008

A Reforma Psiquiátrica - Verdades, Mitos e Política

Estava pensando um dia desses sobre o que vejo na faculdade, e o tema da Reforma Psiquiátrica e do Movimento Antimanicomial vieram-me instantaneamente à mente. Tive aulas de Psicologia Social e Políticas Públicas com Simone Paulon, uma das principais pesquisadoras da área, compareci à terceira edição do Mental Tchê em São Lourenço do Sul e muito ouvi meus veteranos falarem a respeito.

Basicamente, os princípios que norteiam a luta antimanicomial são os da humanização dos serviços de saúde mental, e por uma maior descentralização do poder dentro destes serviços, agora concentrados nas mãos dos psiquiatras. O ideal da reforma psiquiátrica é, em outras palavras, garantir que seus usuários sejam tratados como os seres humanos que são, e não como os internos de hospícios tem sido historicamente tratados, como animais. Neste ponto, acho que todos, desde psiquiatras até psicólogos concordariam.

Mas não consigo parar de me questionar se a reforma psiquiátrica até agora empreendida conseguiu fazer o que se propôs. Ela está dando certo?

Com certa freqüência, vejo notícias de jornais falando sobre como usuários de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que deveriam de certa forma “substituir” os hospitais psiquiátricos, são mau atendidos, não recebem seus remédios, que vivem um constante “entra-e-sai” do CAPS. Estes jornais frequentemente defendem que isto não pode continuar desta maneira, e que a única solução seria restabelecer os manicômios. Vários colegas de curso, ao se depararem com tais reportagens, saem bradando que a mídia é “reacionária” e que foi “comprada” pelos psiquiatras. Poderia pensar assim também, e não ter que agoniar-me com as dúvidas que agora me afligem, e ser aceito como mais um feliz estudante de Psicologia com pensamento crítico, mas prefiro ser levemente reacionário e ignorante, e questionar se o que estes jornais afirmam (o mau atendimento de usuários de CAPS) é verdadeiro ou não. E, usando um pouco do abominado senso comum, não vejo o que a mídia teria a ganhar fabricando notícias sobre o sistema substitutivo. Nenhum jabá corporativo valeria a sua credibilidade se este sistema funcionasse perfeitamente.

Admito minha ignorância a respeito deste assunto, pois não conheço nenhum CAPS por dentro, e as poucas coisas que conheci a respeito da reforma psiquiátrica me foram apresentadas por seus defensores, o que torna seu testemunho um tanto quanto suspeito. Sempre que ouvimos um psiquiatra criticar a reforma psiquiátrica, dizemos que ele é “enviesado” e tem “motivações políticas”, pois seu poder com esta reforma esta se esvaindo. Mas por que não dizemos o mesmo quando um psicólogo defende a reforma, pois ele está ganhando poder com ela?

É uma questão complicada. Ouço dizer bastante que por trás de toda teoria técnica há um discurso político. Que os psiquiatras defendem os hospitais psiquiátricos por que nestes eles detêm poder absoluto. Mas isto torna a eficácia das técnicas psiquiátricas nulas, meros epifenômenos do sistema político da saúde mental? Sei que, historicamente, pacientes psiquiátricos foram simplesmente empilhados em prédios sujos e escuros e lá esquecidos, mas será que foi (e é) assim mesmo? Mais uma vez, admito minha ignorância, pois nunca conheci um hospital psiquiátrico de verdade. Fui no São Pedro uma vez, mas acho que não posso tomá-lo como modelo, já que, por ter sido o primeiro do estado, ele é um símbolo da força dos psiquiatras, e portanto é um alvo preferencial dos ataques reformistas. Acho que a Clínica Paulo Guedes de Caxias do Sul seria um melhor exemplo, por ser um tanto quanto ignorada no plano político estadual (nunca me falaram nada a respeito dela. É só São Pedro na cabeça).

Recebi um e-mail uma vez, através da lista do COREP, falando sobre uma dessas reportagens “reacionárias” que saiu n’O Globo do Rio de Janeiro, sobre pacientes psiquiátricos morrendo na rua. Não lembro direito dos detalhes, mas lembro que o autor da mensagem conclamava a todos nós a repudiar a tal da reportagem, e a trabalhar rapidamente para “conter os danos causados” por ela. Por “contenção de danos” neste contexto, imagino que fosse convencer a opinião pública de que a reportagem não refletia a realidade. Não sei se reflete, e confio que meus colegas mais experientes esclareçam este tópico. Mas fico pensando... por que a mensagem deste e-mail era sobre “conter os danos causados” pela reportagem, e não “impedir que mais mortes aconteçam” por causa das falhas do sistema substitutivo? Os argumentos de que não há dados estatísticos sobre as mortes dentro de hospitais psiquiátricos, e que se mantivermos o apoio da opinião pública, a reforma poderá continuar, e a condição geral dos usuários do sistema de saúde mental melhorará foram os primeiros que eu usaria em defesa da contenção de danos e de uma publicidade eficiente. Mas um mestre de Karatê me perguntou durante um treino: o que é melhor: ser eficiente ou parecer eficiente? É uma posição filosófica bem diversa da máxima maquiavélica de que parecer é mais importante do que ser. Além disso, devo admitir que Artes Marciais e Políticas Públicas são domínios bem diversos, e que muitas coisas que se aplicam à uma, não se aplicam á outra. Mas será que parecer é mais importante do que ser?

Dizem que a melhor forma de propaganda é o boca-a-boca: alguém usa seu serviço, gosta, e recomenda para os amigos e conhecidos. Desta maneira, se você for bom no que faz, logo terá uma clientela cativa. Não sei se há estudos confirmando este fenômeno, mas casos anedotais a respeito disto existem por toda parte. Seria demais supor que a melhor publicidade para a reforma psiquiátrica é seu funcionamento eficaz? Cansei de ouvir que “político, tudo é”, para citar ainda outro e-mail que recebi sobre estas pendengas. A parte técnica, prática e funcional não quer dizer absolutamente nada? É só um mal necessário, como o extintor de incêndio obrigatório em todos veículos automotores (que diga-se de passagem, não serve para muita coisa)? Utilizando-me desta lógica, é possível defender a substituição da Psicologia e da Psiquiatria no tratamento de transtornos mentais, e colocar Terapia de Florais em seus lugares. Afinal, não é tudo política? Se eu for um terapeuta floral muito eficiente no campo da política, eu posso passar por cima de todas as pesquisas empíricas irrelevantes e fazer do meu discurso mais importante que todos os outros. Certo?

O que quero questionar não são os objetivos da Luta Antimanicomial, muito nobres, mas seus meios, que, pelo que me parecem, não são lá grande coisa. Claro, os seus defensores conseguiram transformar a reforma psiquiátrica em lei, e isso demonstra grande habilidade e força, especialmente quando se pensa que o adversário principal da reforma seja o cartel médico. Impedir que as freqüentes ondas de ataque vindas do “outro lado” derrubem a lei é outra prova de poder. Mas e os pacientes psiquiátricos, como ficam? Não tenho a menor dúvida de que há milhares de psicólogos, enfermeiros, psiquiatras, terapeutas ocupacionais e outros tantos profissionais que trabalham com saúde mental preocupados com as condições daqueles que procuram sua ajuda. Mas as reportagens que vira e mexe aparecem, falando sobre pacientes de CAPS morrendo feito moscas, por mais questionáveis que possam ser, trazem à tona algo que pode ser verdadeiro: o sistema substitutivo não está dando conta do recado. Isto é verdadeiro realmente? Não sei. De novo devo admitir minha ignorância sobre este assunto, já que não conheço o “front”, e passo (por enquanto) todo meu tempo atrás de livros e polígrafos xerocados. Mas se simplesmente refutarmos estas afirmações como sendo “descabidas”, ou mesmo “reacionárias” e “mentirosas”, sem discutir criticamente o que acontece, vamos tirar os psiquiatras de seus locais de poder, e colocar os psicólogos em outro.E chamar quem é contra isso de desalmado ou coisa pior.