quarta-feira, 28 de maio de 2008

Psicanálise e (alguns dos) Seus Problemas

Andarilho diz:

Agora eu estou fazendo um relatório sobre o seminário do Mr. Antivirus, Norton. E ele é lacaniano. Então estou estudando Lacan por tabela

Marcelo Duarte diz:

Sim, sim. Eu tenho aula com ele. Mas segunda feira eu me meti.

Andarilho diz:

Fale-me mais a respeito.

Marcelo Duarte diz:

Eu dei umas encurraladas nele. O bom desse professor é que ele não é fanático, ele sabe das limitações da teoria. Tipo, eu questionei alguns dos fundamentos da teoria. A concepção estrutural do sujeito. Mas isso foi só dúvida. Eu critiquei mesmo quando ele falou da clínica porque, honestamente, a psicanálise como método acaba colocando todo mundo em análise, se puder. E ele meio que teve que admitir isso. E eu também critiquei uma outra coisa que ele colocou lá que era a incomunicabilidade existente entre as teorias.

Andarilho diz:

É... se for comparar uma coisa tipo TCC ou ACP com Psicanálise lacaniana, realmente não tem diálogo.

Marcelo Duarte diz:

Sim. E qual o motivo disso?

Andarilho diz:

Eu digo que é frescura.

Marcelo Duarte diz:

Cada teoria trata de um objeto diferente. E eu até acredito que o objeto Homem é um objeto construído, não está dado. Mas concomitantemente a isso, deveria haver um esforço de conciliação. Porque o objeto pode não ser exatamente o mesmo. Mas também não é inteiramente diferente.

Andarilho diz:

Mas daí tem que existir uma vontade (não quero usar "desejo" nessa conversa) de por as duas teorias no mesmo plano. Tipo, fazer um teste de eficácia, comparando clínica lacaniana e TCC no tratamento de esquizofrenia. Definir alguns pontos importantes da terapia, quanto tempo deve durar, elaborar manuais de conduta para as duas terapias. Enfim, fazer todas aquelas coisas empíricas que são altamente criticáveis por limitarem demais a terapia, mas que servem pra comparar duas técnicas e ver no que elas são eficazes. Só que eu duvido que exista algum lacaniano que vá fazer qualquer uma das coisas que eu listei. Pontos importantes da terapia? Transferência, e o Lacan escreveu um seminário inteiro sobre isso, que deve ser completamente enrolado e não dizer nada. Tempo de duração? Se possível, ad infinitum.

Marcelo Duarte diz:

Sim, sim. Mas eu nem digo da terapia. Falo mais da concepção teórica do sujeito, que é anterior à terapia.

Andarilho diz:

Isso entraria no "manual" - que daria tipo um código de conduta para o terapeuta durante sessão. Teria que escrever essas coisas de forma simples, clara e direta. E da última vez que a gente pediu uma cadeira assim para o departamento de Psicanálise, a gente teve que ouvir que é impossível fazer uma introdução à Psicanálise - tem que aprender por transferência. Em outras palavras, tem que ser psicanalista pra entender psicanálise.

Marcelo Duarte diz:

Sim. Mas isso aí é mentira. Hoje no meu estágio, já que tudo o que eu ia fazer foi cancelado, eu peguei o meu orientador para esclarecer algumas coisas que foram vistas em MEDEP. E ele basicamente desenhou para mim um diagrama sobre como é que as diferentes estruturas da personalidade se davam e porquê. Claro que ultrasimplificado. Mas foi bem didático.

Andarilho diz:

Ele é psicanalista teu orientador?

Marcelo Duarte diz:

Sim, é um lacaniano afu. Vai ver que como ele não é acadêmico, ele não está condicionado a ser tão enrolador quanto os professores. Só não é tão afu porque ele trabalha no posto.

Andarilho diz:

É, eu pensei que como ele trabalha no mundo real ele não tem tanto tempo pra viajar como nossos professores. Ele deve ver na prática que a teoria lacaniana não funciona (exceto retroativamente), e abandona o que não serve.

Marcelo Duarte diz:

Humm... Não teria tanta certeza.

Andarilho diz:

Quais as tuas hipóteses a respeito disso?

Marcelo Duarte diz:

Olha cara, tem uma hipótese que eu tenho que é a seguinte: A terapia psicanalítica funciona. Tipo, "tudo vai". Grande parte do que faz toda a questão terapêutica funcionar é a própria Terapia, entendida assim: Existe Terapia Psicanalítica, Terapia Humanista, Terapia Cognitiva, etc. Um dos componentes desse binômio é a Terapia. O outro é a linha teórica. Me consta que uma terapia, só por ser Terapia, já tem funcionalidade por si só. Dá pra chamar isso de placebo. Ou não, também. Mas não importa. Quanto ao restante, a parte psicanalítica, ou mesmo a lacaniana, pode funcionar em alguns casos, em outros nem tanto. Mas mesmo no contexto da transferência, é muito difícil avaliar o quanto a terapia está funcionando ou não. Muitas vezes o paciente e o terapeuta discordam sobre essa questão. E eles são os que mais deveriam saber. E mesmo que pareça não funcionar é pouco provável que o psicanalista vá descartar partes de sua teoria baseado nisso. Muito mais fácil é encontrar outro culpado. E desconfio que esse seja o caso para terapeutas de outras linhas também.

Andarilho diz:

Hmmm... Cara, tu já leu o artigo do Seligman sobre eficiência de psicoterapia?

Marcelo Duarte diz:

Aquele famoso que teve o estudo na inglaterra e concluiu que tudo meio que funcionava?

Andarilho diz:

Esse mesmo, que concluiu que, no final das contas, todos os tipos de psicoterapia estudados eram igualmente eficientes, apesar de nem todos serem eficazes pra muita coisa. A partir disso e de outras coisas, o Seligman formulou uma hipótese (ou teoria, sei lá) muito parecida com a tua primeira: que todos os tipos de terapia (ou de terapeuta) compartilham um núcleo comum de práticas. Ele chamou isso de "Práticas Profundas", por que elas estão além da teoria empregada. O Rogers já falava disso. Ele dizia que um terapeuta precisa ser empático, aceitar positivamente e de forma incondicional o paciente e ser congruente (fazer o que fala; falar o que faz). Esses três pontos seriam essenciais e suficientes pra uma terapia "dar certo" (seja lá o que isso signifique). Acho que essa lista é bem completinha, mas pode faltar alguma coisa. E, partindo dessa listinha, qualquer relacionamento pode ser terapêutico.

Marcelo Duarte diz:

O negócio do "incondicional" é controverso.

Andarilho diz:

Pois é. Por "incondicional" dá pra entender muita coisa. E dá pra argumentar que, a partir do momento que o terapeuta tenta mudar um comportamento do paciente, a aceitação dele não é mais incondicional. Mas enfim, tem que aceitar o paciente.

Marcelo Duarte diz:

Sim. Mas de qualquer forma, sejam esses os elementos ou não, o fato é que há algo em comum às terapias. E que faz a coisa andar.

Andarilho diz:

Sim. E talvez essas coisas em comum venham mais dos terapeutas em si do que da teoria.

Marcelo Duarte diz:

Mas eu discordo quanto ao "suficiente". Eu acho que o segundo elemento do binômio, a linha teórica, também conta. Alguns tipos de problema simplesmente não vão ser resolvidos com um sorrisinho empático. Tem algumas coisas que são pontuais, que não dá pra resolver de qualquer jeito.

Andarilho diz:

É, não dá pra tratar TOC só com abraço.

Marcelo Duarte diz:

Exato.

Andarilho diz:

Concordo contigo. Mas a partir do que eu sei de Rogers, o que ele quis dizer por "suficiente" é proporcionar auto-atualização (crescimento pessoal). O que é uma coisa bem diferente de tratar TOC, ou anorexia.

Marcelo Duarte diz:

Ah, tá. Auto-atualização pode ser.

Andarilho diz:

Por que um cara cuja maior preocupação é o crescimento pessoal não tem muita coisa com que se preocupar.

Marcelo Duarte diz:

Sim, sim.

Andarilho diz:

Talvez esses três pontos não sejam "suficientes", mas são necessários pra qualquer tipo de terapia

Marcelo Duarte diz:

É. Pensando generalísticamente, pode ser, com suas devidas exceções. Porque tem terapia que nem é tão empática mais vai igual. Sempre há exceções em termos de relações humanas. Mas certamente podemos dizer que são linhas gerais que têm sua importância ao constituir uma base terapêutica.

Andarilho diz:

Eu pensei no caso do psicanalista roots que se nega a apertar a mão do cliente pra não atrapalhar a análise, e que essa análise mesmo assim beneficia o cliente.

Marcelo Duarte diz:

Ou quando o cara tá deitado no divã olhando pro teto, não tá rolando muita empatia ali na mancha da pintura. Mas eu acho que um dos maiores problemas da terapia psicanalítica é ético, não ontológico ou metodológico.

Andarilho diz:

Que problema ético seria esse?

Marcelo Duarte diz:

O problema ético que eu vejo na verdade é mais de um. Começa pela prática de querer desenterrar problemas que antes não estavam manifestos. Procurar conflitos na pessoa. Não limitar o escopo de sua terapia e, por conseqüência, o poder de influência do terapeuta. Também não concordo com o lugar de saber não-compartilhado que o terapeuta assume. Tem muita coisa que vai rolar na contratransferência de um psicanalista que pode ser mais prejudicial do que benéfico.

Andarilho diz:

Pois é. Nesse artigo do Norton que eu li pra fazer o relatório, ele cita Lacan (viu que eu tava estudando por tabela?), que diz que a análise só vai adiante se o analisando se colocar num lugar de não-saber. Tu tem que colocar o analista numa posição divina pra daí se beneficiar do saber dele.

Marcelo Duarte diz:

Exato. E isso é uma das coisas que eu mais discordo.

Andarilho diz:

Sei lá, daí fica fácil pro analista, já que ele nunca vai ser questionado se funcionar assim.