quarta-feira, 14 de maio de 2008

Ciência e Religião

É inato no ser humano buscar a verdade – considero isso um fato universal a todas as pessoas de todos os tempos. Entretanto, o mesmo não pode ser dito dos meios utilizados para buscar essa verdade. Atualmente, existem dois caminhos majoritários, que apesar de não serem auto-excludentes, frequentemente são colocados como exatos opostos: ciência e religião. Ambos são meios válidos para apreender a realidade do mundo, entretanto, diferem radicalmente no modo de funcionar.

A ciência trabalha com hipóteses, e seu princípio fundamental é a dúvida, pois um “cientista sem uma questão não é ninguém” diria Aristóteles. Com base no falseamento, o cientista busca alcançar um conhecimento mais sólido e válido, partindo do que já era previamente conhecido. Trocando em miúdos, o cientista formula uma hipótese, desenvolve uma metodologia para testá-la e então, baseado nos testes empíricos, confirma, refuta ou reformula sua hipótese original. A religião, por outro lado, é muito mais simples: um representante do poder divino é imbuído com o conhecimento eterno, e então ele o transmite para outras pessoas, que acreditam ou não no que lhe dizem. Digo mais uma vez que ambos os caminhos são maneiras válidas para compreender a realidade e que não são conflitantes entre si, pois a natureza que ambos tentam apreender é qualitativamente diversa. Enquanto a ciência enfoca o mundo material e seus fenômenos, a religião explica o mundo imaterial, transcendente, divino.

O conflito que atualmente existe entre estas duas vias é o desejo político de alguns de, utilizando-se de seus métodos específicos, refutar os pressupostos do outro (1). Por exemplo, muitos cientistas de renome como Richard Dawkins tem efetuado o que se pode chamar de “cruzada” contra as igrejas evangélicas. Mas devo dizer que quem começou a briga foram os evangélicos, que querem a todo custo que seja ensinado nas aulas de ciências a Teoria do Design Inteligente – um nome bonito para Criacionismo – com status de igualdade com a Teoria da Evolução. Dawkins, um biólogo evolucionista, não poderia deixar barato.

E apesar de ter dito anteriormente que ciência e religião são caminhos igualmente válidos e que podem conviver pacificamente, acredito que não podemos confundi-los. Sendo mais específico, não podemos deixar a religião tomar o lugar da ciência, muito menos a ciência tornar-se uma religião.

Grosseiramente falando, a ciência lida com incertezas, e assim progride, trazendo maior conforto e saber para a humanidade, enquanto a religião lida com certezas, permanece imutável e dá segurança e solidez para aqueles que a procuram. Para quem estuda alguma disciplina científica ou possui um apurado pensamento lógico, é evidente que cada vez mais a ciência se encarregará de responder questões que anteriormente pertenciam à alçada da religião. A astronomia hoje é considerada uma disciplina solidamente estabelecida como ciência, e ninguém (de bom senso) questiona se a terra é redonda ou se o sol é o centro do sistema solar. Existem sólidas evidências que corroboram para que a Teoria da Evolução seja considerada “verdadeira”: descobriram-se muitos fósseis de animais extintos que deram “origem” a espécies atuais, foi observada a seleção das populações melhor adaptadas para viver em determinados ambientes e a extinção de espécies e subespécies mal-adaptadas ao seu habitat. Por ser impossível criar um experimento que manipule diretamente a Evolução, não podemos considerá-la uma teoria absolutamente comprovada, mas temos muitos motivos para acreditar que é uma metateoria boa demais para ser refutada. Contudo, Darwin é mais polêmico que Copérnico por que na Bíblia não há um tratado de astronomia, mas há uma descrição bastante detalhada de como Deus criou todos os animais em um dia, o homem no outro e descansou no último. Por refutar a história bíblica do livro de Gênesis, que narra a criação do universo, o Evolucionismo é uma heresia, e põe em xeque a fé de bilhões (2) de pessoas de que um Deus todo poderoso existe. Pessoalmente, acredito que a Teoria da Evolução não é tão poderosa assim, e não consegue refutar a existência de Deus. Ainda assim, considerando que muitas pessoas religiosas apresentam pensamento “preto ou branco”, falsear um aspecto menor de sua crença é o suficiente para deixar milhões em pé de guerra.

Utilizando-se do argumento de que a Evolução é “apenas uma” teoria dentre muitas, os criacionistas defendem que a Teoria do Design Inteligente (que um ser superior criara todos os seres vivos do planeta) deve ser ensinada como alternativa nas aulas de biologia. Já falei que a Evolução não é só “apenas uma” teoria, mas A Teoria biológica mais versátil e avançada de que dispomos, tanto que ela tem sido generalizada para muitos outros campos, entre eles a Psicologia. O Design Inteligente, por outro lado, é apenas a reformulação de um dogma milenar, que explicou e deu conforto para muitas pessoas no passado, mas que não possui nenhuma base científica sólida – apenas o desejo da parte de muitos para que seja verdade. Mas como disse John Adams, fatos são coisas teimosas, por que continuam sendo fatos apesar de nossa vontade.

Não concordo com tudo o que Dawkins e outros de sua classe dizem, mas acho perfeitamente razoável que eles armem um contra-ataque filosófico forte contra os crentes. Abandonar uma teoria versátil, dinâmica, flexível e que permite que inúmeras pesquisas novas se desenvolvam a partir dela, e substituí-la por outra engessada, rígida e tão conservadora que não permitiria nenhuma nova descoberta (3) seria uma catástrofe. Aplicar o rígido pensamento religioso para a ciência não pode trazer nada de positivo, justamente por impedir inovações, e estimular o comodismo intelectual.

E apesar desta minha apaixonada defesa do pensamento científico, sinto-me no dever de apontar os riscos que ele encerra. Considero a verdadeira Ciência inatacável, pois um cientista verdadeiro, comprometido com a busca da verdade, honesto consigo mesmo e com os demais beneficiará o mundo muito mais do que o prejudicará, creia ele em Deus ou não, pois sua conduta o coloca acima de disputas políticas mesquinhas. Por outro lado, muitos centros de pesquisa científica fazem qualquer outra coisa, menos Ciência. De fato, é muito comum uma disciplina anteriormente científica transformar-se em um culto organizado em torno de suas “descobertas”. O exemplo mais bem-acabado disto é a Psicanálise. Esta disciplina, criada no fim do século XIX por Sigmund Freud, tinha originalmente o intuito de estudar os processos psicológicos profundos dos seres humanos. Freud considerava o método científico o melhor disponível para estudar qualquer coisa, e a Psicanálise foi estruturada de forma a ser uma ciência natural. Se isso tornou-se realidade, é outra história. Como disse antes, a ciência lida com hipóteses mutáveis, e a religião lida com certezas permanentes. Freud aparentemente esqueceu-se disso, e quem quisesse se tornar um psicanalista deveria aceitar incondicionalmente os pressupostos psicanalíticos. Quem discordava deixava de ser discípulo e era expulso do clubinho. Adler, Jung e Reich que o digam. As contribuições do velho Sigmund para a Psicologia são inestimáveis, pois os questionamentos feitos por ele permitiram que muitas e muitas pesquisas novas florescessem, e o conhecimento que possuímos sobre nós mesmos seria muito menor se não fossem os insights freudianos. Entretanto, Freud poderia ter feito uma colaboração muito maior para a humanidade se tivesse considerado a possibilidade de estar errado em algum ponto de sua teoria, e a mantivesse aberta para reformulações propostas por outros que não ele (4). Hoje, a Psicanálise Freudiana Ortodoxa é considerada uma mera pseudociência.

Pseudociências, de maneira geral, são cultos religiosos que se passam por ciências sérias, cujos pressupostos são rígidos, inflexíveis e absolutos, além de contarem com um embasamento empírico muito duvidoso (5). O processo para tornar-se membro de determinado grupo ou movimento pseudocientífico é muito similar ao processo para tornar-se membro de uma igreja. Para poder entender as teorias dele, é necessário primeiro estudá-lo. Não apenas ler os artigos e pensar a respeito, mas fazer cursos, participar de conferências e perder um bom tempo lendo e relendo os textos mais básicos até entender. Depois de tanto dinheiro investido (por que, acredite, esses cursos não são baratos, pelo menos no caso da Psicanálise) e tempo utilizado para melhor compreender as idéias propostas pelo grupo, elas passam a fazer sentido para você – e este conhecimento te difere dos demais mortais e te eleva perante eles. Você se torna um igual perante os demais membros do movimento. Isto se chama “iniciação”. Depois da iniciação, você poderá ler os textos mais avançados, e tornar-se ainda mais erudito e entendido na teoria. Quem não segue este processo não está adequadamente preparado para criticar a teoria, mas o engraçado é que quem faz tudo isso não critica nada! É compreensível, pois deve ser bem humilhante ter que admitir que tudo o que se gastou e investiu foi inútil. É cognitivamente mais econômico ter certeza de que o que lhe ensinaram é absolutamente verdadeiro, e é mais carinhoso ao ego. Karl Jaspers, em seu livro “Introdução ao Pensamento Científico” cita o exemplo de uma discussão que teve com um psicanalista, que alegava que, uma vez que ele, Jaspers, se submetesse à análise, toda a teoria psicanalítica faria sentido para ele. Ou seja, ele precisava colocar-se em posição inferior e receber o conhecimento de fora. O bom existencialista questionou isso na hora. Afinal, qual é a diferença deste processo todo da crisma católica? Começa-se estudando a Bíblia, vai-se crescendo, e no fim do processo, recebe-se a crisma e torna-se um adulto perante Deus. Trocando “Bíblia” por “livro-texto”, “crisma” por “diploma” e “Deus” por “Chefe da Teoria”, temos essencialmente a mesma coisa.

Fazer a crisma não é algo inerentemente negativo, pois é um rito religioso que reconhece-se como tal, e não tem nenhuma pretensão científica (geralmente). Mas com as pseudociências, o buraco é mais embaixo. Estes iniciados em obscuras artes não se contentam em aprender a teoria, mas querem pô-la em prática, geralmente cobrando uma boa grana por isso. Aqui em Porto Alegre existia (ou existe) uma clínica especializada em curar síndrome de down através de exercícios de respiração. Quantas e quais pesquisas comprovam a eficácia destes exercícios? Nenhuma. Quanto deve custar para receber este tratamento? Muito. Levando em conta a relação entre custos e benefícios, é vantajoso para uma mãe desesperada pela condição de sua criança fazer um tratamento assim? Nem financeiramente, muito menos emocionalmente. É bem provável que algum iniciado em Dianética (a pseudociência por trás da Cientologia) possa colocar em risco o emprego, o negócio ou até mesmo a vida de alguém ingênuo o suficiente para pagar por seus serviços. Todo cuidado é pouco em situações como estas.

Os casos que citei são extremos, pois envolvem sentimentos e vidas de seres humanos. Entretanto, há casos mais sutis, onde a única morte é do espírito crítico de estudantes de Ciências Humanas, como Psicologia. Começa-se exigindo que se leiam todos os textos de certa disciplina para então poder criticá-la, que se faça referência aos autores que o professor quer, e pronto! Temos mais alguns seguidores da teoria, que a aceitaram apenas por que ela é misteriosa, complexa, e por ter lido tanto que se passa a acreditar piamente nela (6).

Mas, apesar de tudo que disse, acredito que seja possível que haja uma relação e uma intersecção saudável entre ciência e religião. Apesar de tentarem entender coisas diferentes de formas diferentes, ambas compartilham a busca pela verdade. A religião pode propor os desafios de pesquisa, enquanto que a ciência refuta suas hipóteses. Dogmas imutáveis trazem segurança, mas nos cegam para esta busca. Se as religiões forem capazes de tornarem-se mais flexíveis, autocríticas e questionadoras, provavelmente metade dos conflitos que enfrentamos no mundo hoje perderiam todo o sentido e acabariam. Seria bem melhor viver em um mundo onde as religiões são científicas, e as ciências não são religiosas.




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1. Também ocorrem pesquisas muito interessantes sobre aspectos neurológicos das experiências religiosas, mas que considero muito diferentes dos conflitos abordados neste post.

2. Talvez nem tanto, mas estou me baseando nas estatísticas de que 1,5 bilhão de pessoas são cristãos, e que todos acreditam em tudo o que a Bíblia diz.

3. Sério, alguém por favor me diz como eu posso fazer pesquisas utilizando os pressupostos teóricos da Teoria do Design Inteligente. Confirmações fuleiras da existência de Deus não contam como pesquisa.

4. Dizer que Freud não reformulou sua teoria da psicodinâmica é ignorância. A questão é que só ele podia fazer isto – os seus seguidores deveriam meramente acatar sua decisão.

5. Existem teorias que, apesar de não terem um bom embasamento empírico, seja por serem muito novas ou por não existir interesse em pesquisá-las, são boas e contribuem para o progresso científico. Para não ser injustos com estas teorias, os filósofos da ciência as chama de “protociências” – projetos de ciência. Frequentemente a Psicologia como um todo é considerada uma protociência.

6. Juro que nunca tive aulas assim. É sério.